"Sem medo da verdade."

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

PARA QUE O POVO BRASILEIRO SE PONHA EM PÉ


  Dentro de poucos dias realizaremos, mais uma vez, eleições em todo o país. Elas coincidirão com o 24º aniversário da promulgação da atual Constituição. Quer isto dizer que já vivemos em plena democracia? Nada mais ilusório. Se o regime democrático implica necessariamente a atribuição de poder soberano ao povo, é forçoso reconhecer que este continua, como sempre esteve, em estado de menoridade absoluta.
Povo, o grande ausente
  Quando Tomé de Souza desembarcou na Bahia, em 1549, munido do seu famoso Regimento do Governo, e flanqueado de um ouvidor-mor, um provedor-mor, clero e soldados, a organização político-administrativa do Brasil, como país unitário, principiou a existir. Tudo fora minuciosamente preparado e assentado, em oposição ao descentralismo feudal das capitanias hereditárias. Notava-se apenas uma lacuna: não havia povo. A população indígena, estimada na época em um milhão e meio de almas, não constituía, obviamente, o povo do novel Estado; tampouco o formavam os 1.200 funcionários – civis, religiosos e militares – que acompanharam o Governador Geral. Iniciamos, portanto, nossa vida política de modo original: tivemos Estado, antes de ter povo. Quando este enfim principiou a existir, verificou-se desde logo que havia nascido privado de palavra. Foi assim que o Padre Antonio Vieira o caracterizou, no Sermão da Visitação de Nossa Senhora, pregado em Salvador em junho de 1640. Tomando por mote a palavra latina infans, assim discorreu o grande pregador:
  A nossa independência, que paradoxalmente não foi o resultado de uma revolta do povo brasileiro contra o rei de Portugal, mas, ao contrário, do povo português contra o rei no Brasil, não suscitou o menor entusiasmo popular. O naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire pôde testemunhar: “A massa do povo ficou indiferente a tudo, parecendo perguntar como o burro da fábula: – Não terei a vida toda de carregar a albarda ? ”
    A mesma cena, com personagens diferentes, é repetida 67 anos depois, na proclamação da república. “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava“, lê-se na carta, tantas vezes citada, de Aristides Lobo a um amigo. “Muitos acreditavam sinceramente estar vendo uma par
A emancipação política do povo brasileiro
   É preciso atacar desde logo o ponto principal.  A soberania, na Idade Moderna, consiste, antes de tudo, em aprovar a Lei das Leis, isto é, a Constituição. Trata-se de uma prerrogativa que só pode ser exercida diretamente. Quem delega o seu exercício a outrem está, na realidade, procedendo à sua alienação. O chamado “poder constituinte derivado” é, portanto, um claro embuste.
 Ora, neste país, Constituição alguma, em tempo algum, jamais foi aprovada pelo povo. Todas elas foram votadas e promulgadas por aqueles que se diziam, abusivamente, representantes do povo; quando não foram simplesmente decretadas pelos ocupantes do governo.O mesmo ocorre com as emendas constitucionais. A Constituição Federal em vigor, por exemplo, já foi emendada (ou remendada) 70 (setenta) vezes em 22 anos; o que perfaz a apreciável média de mais de 3 emendas por ano. Em nenhuma dessas ocasiões, o povo foi convocado para dizer se aceitava ou não tais emendas.Isto, sem falar no fato absurdo de que a Constituição Federal, ao contrário de várias Constituições Estaduais, não admite a iniciativa popular de emendas ao seu texto.
  É preciso, pois, começar a reforma política (alguns preferem dizer a “Revolução”), reservando ao povo o poder nuclear de toda soberania. No nosso caso, ele consiste em aprovar, diretamente, não só a Constituição Federal, como também as Constituições Estaduais e as Leis Orgânicas Municipais, bem como suas subsequentes alterações respectivas.
Em segundo lugar, é indispensável reconhecer ao povo o direito de decidir, por si mesmo, mediante plebiscitos e referendos, as grandes questões que dizem respeito ao bem comum de todos. A Constituição Federal declara, em seu art. 14, que o plebiscito e o referendo, tal como o sufrágio eleitoral, são formas de exercício da soberania popular. Mas determina, no art. 49, inciso XV, que “é da competência exclusiva do Congresso Nacional autorizar plebiscitos e convocar referendos”. Ou seja, o mandante somente pode manifestar validamente a sua vontade, se houver concordância dos mandatários. Singular originalidade do direito brasileiro!
    Para corrigir esse despautério, a Ordem dos Advogados do Brasil, por proposta do autor destas linhas, apresentou anteprojetos na Câmara dos Deputados e no Senado Federal (transformados no projeto de lei nº 4.718/2004 na Câmara dos Deputados e projeto de lei nº 001/2006 no Senado), pelos quais o plebiscito e o referendo podem ser realizados mediante iniciativa do próprio povo, ou por requerimento de um terço dos membros da Câmara ou do Senado.
 A proposta da OAB procurou harmonizar os dispositivos antagônicos da Constituição Federal, interpretando a autorização e a convocação de plebiscitos e referendos, pelo Congresso Nacional, como atribuições meramente formais e não de mérito.Previram ainda os anteprojetos da OAB novos casos de obrigatoriedade na realização de plebiscitos e referendos.
 Assim é que, para impedir a repetição da “privataria” do governo FHC, passaria a ser obrigatório o plebiscito para “a concessão, pela União Federal, a empresas sob controle direto ou indireto de estrangeiros, da pesquisa e da lavra de recursos minerais e do aproveitamento de potenciais de energia hidráulica”; bem como para a concessão administrativa, pela União, de todas as atividades ligadas à exploração do petróleo.
Quanto aos referendos, a fim de evitar o absurdo da legislação eleitoral em causa própria, determinam os projetos de lei citados a obrigatoriedade de serem referendadas pelo povo todas as leis sobre matéria eleitoral, cujo projeto não tenha sido de iniciativa popular.Inútil dizer que tais projetos de lei acham-se devidamente paralisados e esquecidos em ambas as Casas do Congresso.
Para completar o quadro de transformação da soberania popular retórica em poder supremo efetivo, tive também ocasião de propor duas medidas indispensáveis em matéria eleitoral. De um lado, o financiamento público das campanhas; de outro lado, a introdução do recall ou referendo revocatório de mandatos eletivos, proposta também pela OAB e objeto da emenda constitucional nº 073/2005 no Senado Federal. Assim, o povo assumiria plenamente a posição de mandante soberano: ele não apenas elegeria, mas também teria o direito de destituir diretamente os eleitos. Para os que se assustam com tal “excesso”, permito-me lembrar que o recall já existe e é largamente praticado em 19 Estados da federação norte-americana.
   Não sei se tais medidas tornar-se-ão efetivas enquanto eu ainda estiver neste mundo. O que sei, porém, com a mais firme das convicções, é que sem elas o povo brasileiro continuará a viver “deitado eternamente em berço esplêndido”, sem condições de se pôr de pé, para exigir o respeito devido à sua dignidade.

  * Fábio Konder Comparato é  professor titular  da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Doutor em Direito pela Universidade de Paris e doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra. Em 2009, recebeu o título de Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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