"Sem medo da verdade."

segunda-feira, 12 de março de 2012

A PAIXÃO PELO PODER

O impulso pela conquista e manutenção do poder, em qualquer meio social – familiar, tribal, nacional ou internacional – e em suas diferentes modalidades – poder político, econômico, religioso, cultural – tem-se mostrado uma das mais fortes paixões a agitar o coração humano. “A maior parte dos homens”, observou Aristóteles, “deseja exercer um poder absoluto sobre muitos”. Thomas Hobbes compartilhou inteiramente essa opinião: “Antes de mais nada”, disse ele, “reconheço como uma inclinação geral do gênero humano o desejo perpétuo e incansável de poder e mais poder, inclinação essa que só cessa com a morte”. E a razão disso, como anunciou o Duque a Sancho Pança, na véspera de sua posse como governador da fantástica ilha Barataria é “ser dulcísima cosa el mandar y ser obedecido”.
Para a sabedoria grega, tal paixão nada mais seria do que o orgulho desmedido (hybris), considerado o mais devastador dos defeitos humanos, segundo adverte o coro no Agamenon de Ésquilo (375 – 379). “A hybris, quando amadurece”, declama um personagem de outra de suas tragédias, “produz a espiga do crime, e o produto de sua colheita é feito só de lágrimas”. A paixão pelo poder chega mesmo, por vezes, a pôr na sombra o impulso natural do amor materno, como o gênio de Shakespeare bem intuiu. Advertida pelo marido da profecia lançada pelas três feiticeiras de que ele seria rei, e sentindo que o temperamento do consorte é todo feito de ternura , Lady Macbeth invoca os espíritos infernais para que eles mudem o seu sexo frágil, enchendo-a, da cabeça aos pés, da mais terrível crueldade. E a fim de sacudir os últimos escrúpulos de consciência do marido, ela lhe lança em rosto uma estupenda bravata: seria capaz de esmigalhar a cabeça do filho que amamenta, se isto fosse indispensável para cumprir o seu desígnio de tornar-se rainha.
Aliás, de acordo com as observações de alguns antropólogos, a atração avassaladora pelo poder é algo que partilhamos com os outros primatas superiores. E a razão disso é de ordem biológica. As relações de poder e submissão são comandadas pela parte mais primitiva do cérebro humano, a chamada zona límbica, que se encontra mesmo nos répteis. Daí porque as relações sociais que envolvem comando e obediência tendem, não raro, a escapar a todo controle racional, e investir mesmo contra todos os sentimentos naturais. Comentando o episódio brutal, em que Augusto, cedendo às instâncias de seus parceiros do momento, Marco Antonio e Lépido, consentiu no assassínio de seu amigo Cícero, Plutarco observa que nenhum animal é mais selvagem que o homem, quando a sua paixão é fundada no poder.
De qualquer modo, é preciso atentar para o fato de que objeto da paixão é a posse, uso e gozo da posição de poder; não o “resultado do poder”, isto é, as obras ou transformações suscetíveis de serem realizadas pelo seu exercício. A possibilidade de se dobrarem as vontades alheias, e de se suscitar o respeito, senão a veneração do povo, como se este se encontrasse diante de um ídolo religioso, provoca um gozo intenso e durável. Aliás, um dos mais importantes recursos de poder consiste em manter os governados em estado permanente de temor e adoração, dois sentimentos, como se sabe, característicos da submissão religiosa.
Importa também salientar que, ao contrário da energia física, sujeita à segunda lei da termodinâmica (entropia), ou seja, a sua constante degradação em calor, o poder político tende sempre, pela sua própria natureza, à concentração, tanto sob o aspecto subjetivo, quanto objetivo. “Quanto mais os homens se sentem fortes”, observou Aristóteles, “tanto maior é o seu apetite de dominação”. “É uma experiência eterna”, advertiu por sua vez Montesquieu em passagem famosa, “que todo homem que detém o poder é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites. Quem diria! Até a virtude precisa ser limitada”. As diferentes experiências dos regimes políticos moralistas, puros e duros, têm confirmado a justeza dessa observação, em todos os tempos e todas as idades.
Acontece que no limite – e aí está a verdadeira tragédia –, todo aquele que exerce um poder despido de freios ou mecanismos de controle corre o risco de ser dominado por ele, e de passar assim, objetivamente, da condição de senhor à de escravo; ou seja, de alguém que já não se pertence, mas vive submetido, servilmente, como o Fausto de Goethe, aos caprichos do demônio que invocou. Efetivamente, raros são os homens de poder que não se deixam escravizar pela “glória de mandar e a vã cobiça desta vaidade, a quem chamamos fama”; raros os que não se deixam iludir pelo “fraudulento gosto que se atiça cuma aura popular que honra se chama”, como denunciou o velho da praia do Restelo nos Lusíadas.
Como já foi repetidas vezes observado, a paixão pelo poder é intrinsecamente corruptora. Há, sem dúvida, a corrupção mais vulgar, daquele que compra a consciência alheia, ou vende a sua. Mas há também uma forma muito mais complexa e sutil, que frisa à loucura moral. O indivíduo escravo dessa paixão tende a se servir, para alcançar seus fins, de todos os sentimentos altruístas que encontra disponíveis diante de si: o amor, a compaixão, a generosidade, a lealdade, o espírito de serviço, a solidariedade. Com desoladora freqüência, velhos amigos e grandes admiradores do governante, ou então pessoas respeitáveis na sociedade pela sua correção e sabedoria, são tentativamente usados em proveito próprio pelo titular do poder, sem nenhum escrúpulo. Aristóteles  assinalou que os homens no poder costumam ter apenas duas espécies de amigos: os úteis e os agradáveis. Eles querem os primeiros para executar suas ordens com habilidade, sem levantar objeções de ordem moral, e procuram os segundos como fonte de entretenimento e diversão.
O que os poderosos têm imensa dificuldade em reconhecer é que, quanto maior o seu poder, mais intensamente são eles cercados e pressionados por uma corte de áulicos, os quais, por puro interesse pessoal ou de grupo, só cuidam de os incensar e de louvar as suas decisões políticas, ocultando sistematicamente os aspectos negativos da pessoa do chefe, ou das decisões por eles tomadas. Como bem advertiu La Fontaine, ao concluir a fábula da raposa e o corvo. Tudo isso explica porque é justamente no exercício do poder que costumam vir à tona os defeitos recônditos da alma humana. “O poder revela o homem”, diz Aristóteles. “Pode-se conhecer bem a alma, os sentimentos, os princípios morais de um homem”.
POR FÁBIO KONDER COMPARATO  - DOUTOR EM DIREITO NA UNIVERSIDADE  DE SORBONNE  NA FRANÇA

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