Dentro de poucos dias realizaremos,
mais uma vez, eleições em todo o país. Elas coincidirão com o 24º
aniversário da promulgação da atual Constituição. Quer isto dizer que já
vivemos em plena democracia? Nada mais ilusório. Se o regime
democrático implica necessariamente a atribuição de poder soberano ao
povo, é forçoso reconhecer que este continua, como sempre esteve, em
estado de menoridade absoluta.
Povo, o grande ausente
Quando Tomé de Souza desembarcou na
Bahia, em 1549, munido do seu famoso Regimento do Governo, e flanqueado
de um ouvidor-mor, um provedor-mor, clero e soldados, a organização
político-administrativa do Brasil, como país unitário, principiou a
existir. Tudo fora minuciosamente preparado e assentado, em oposição ao
descentralismo feudal das capitanias hereditárias. Notava-se apenas uma
lacuna: não havia povo. A população indígena, estimada na época em um
milhão e meio de almas, não constituía, obviamente, o povo do novel
Estado; tampouco o formavam os 1.200 funcionários – civis, religiosos e
militares – que acompanharam o Governador Geral. Iniciamos, portanto,
nossa vida política de modo original: tivemos Estado, antes de ter povo.
Quando este enfim principiou a existir, verificou-se desde logo que
havia nascido privado de palavra. Foi assim que o Padre Antonio Vieira o
caracterizou, no Sermão da Visitação de Nossa Senhora, pregado em
Salvador em junho de 1640. Tomando por mote a palavra latina infans, assim discorreu o grande pregador:
A nossa independência, que
paradoxalmente não foi o resultado de uma revolta do povo brasileiro
contra o rei de Portugal, mas, ao contrário, do povo português contra o
rei no Brasil, não suscitou o menor entusiasmo popular. O naturalista
francês Auguste de Saint-Hilaire pôde testemunhar: “A massa do povo
ficou indiferente a tudo, parecendo perguntar como o burro da fábula: –
Não terei a vida toda de carregar a albarda ? ”
A mesma cena, com personagens
diferentes, é repetida 67 anos depois, na proclamação da república. “O
povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que
significava“, lê-se na carta, tantas vezes citada, de Aristides Lobo a
um amigo. “Muitos acreditavam sinceramente estar vendo uma par
A emancipação política do povo brasileiro
É preciso atacar desde logo o ponto
principal. A soberania, na Idade Moderna, consiste, antes de tudo, em
aprovar a Lei das Leis, isto é, a Constituição. Trata-se de uma
prerrogativa que só pode ser exercida diretamente. Quem delega o seu
exercício a outrem está, na realidade, procedendo à sua alienação. O
chamado “poder constituinte derivado” é, portanto, um claro embuste.
Ora, neste país, Constituição alguma,
em tempo algum, jamais foi aprovada pelo povo. Todas elas foram votadas
e promulgadas por aqueles que se diziam, abusivamente, representantes
do povo; quando não foram simplesmente decretadas pelos ocupantes do
governo.O mesmo ocorre com as emendas constitucionais. A Constituição
Federal em vigor, por exemplo, já foi emendada (ou remendada) 70
(setenta) vezes em 22 anos; o que perfaz a apreciável média de mais de 3
emendas por ano. Em nenhuma dessas ocasiões, o povo foi convocado para
dizer se aceitava ou não tais emendas.Isto, sem falar no fato absurdo de
que a Constituição Federal, ao contrário de várias Constituições
Estaduais, não admite a iniciativa popular de emendas ao seu texto.
É preciso, pois, começar a reforma
política (alguns preferem dizer a “Revolução”), reservando ao povo o
poder nuclear de toda soberania. No nosso caso, ele consiste em aprovar,
diretamente, não só a Constituição Federal, como também as
Constituições Estaduais e as Leis Orgânicas Municipais, bem como suas
subsequentes alterações respectivas.
Em segundo lugar, é indispensável
reconhecer ao povo o direito de decidir, por si mesmo, mediante
plebiscitos e referendos, as grandes questões que dizem respeito ao bem
comum de todos. A Constituição Federal declara, em seu art. 14, que o
plebiscito e o referendo, tal como o sufrágio eleitoral, são formas de
exercício da soberania popular. Mas determina, no art. 49, inciso XV,
que “é da competência exclusiva do Congresso Nacional autorizar
plebiscitos e convocar referendos”. Ou seja, o mandante somente pode
manifestar validamente a sua vontade, se houver concordância dos
mandatários. Singular originalidade do direito brasileiro!
Para corrigir esse despautério, a
Ordem dos Advogados do Brasil, por proposta do autor destas linhas,
apresentou anteprojetos na Câmara dos Deputados e no Senado Federal
(transformados no projeto de lei nº 4.718/2004 na Câmara dos Deputados e
projeto de lei nº 001/2006 no Senado), pelos quais o plebiscito e o
referendo podem ser realizados mediante iniciativa do próprio povo, ou
por requerimento de um terço dos membros da Câmara ou do Senado.
A proposta da OAB procurou harmonizar
os dispositivos antagônicos da Constituição Federal, interpretando a
autorização e a convocação de plebiscitos e referendos, pelo Congresso
Nacional, como atribuições meramente formais e não de mérito.Previram
ainda os anteprojetos da OAB novos casos de obrigatoriedade na
realização de plebiscitos e referendos.
Assim é que, para impedir a repetição
da “privataria” do governo FHC, passaria a ser obrigatório o plebiscito
para “a concessão, pela União Federal, a empresas sob controle direto
ou indireto de estrangeiros, da pesquisa e da lavra de recursos minerais
e do aproveitamento de potenciais de energia hidráulica”; bem como para
a concessão administrativa, pela União, de todas as atividades ligadas à
exploração do petróleo.
Quanto aos referendos, a fim de evitar
o absurdo da legislação eleitoral em causa própria, determinam os
projetos de lei citados a obrigatoriedade de serem referendadas pelo
povo todas as leis sobre matéria eleitoral, cujo projeto não tenha sido
de iniciativa popular.Inútil dizer que tais projetos de lei acham-se
devidamente paralisados e esquecidos em ambas as Casas do Congresso.
Para completar o quadro de
transformação da soberania popular retórica em poder supremo efetivo,
tive também ocasião de propor duas medidas indispensáveis em matéria
eleitoral. De um lado, o financiamento público das campanhas; de outro
lado, a introdução do recall ou referendo revocatório de
mandatos eletivos, proposta também pela OAB e objeto da emenda
constitucional nº 073/2005 no Senado Federal. Assim, o povo assumiria
plenamente a posição de mandante soberano: ele não apenas elegeria, mas
também teria o direito de destituir diretamente os eleitos. Para os que
se assustam com tal “excesso”, permito-me lembrar que o recall já existe e é largamente praticado em 19 Estados da federação norte-americana.
Não sei se tais medidas
tornar-se-ão efetivas enquanto eu ainda estiver neste mundo. O que sei,
porém, com a mais firme das convicções, é que sem elas o povo brasileiro
continuará a viver “deitado eternamente em berço esplêndido”, sem
condições de se pôr de pé, para exigir o respeito devido à sua
dignidade.
* Fábio Konder Comparato é professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Doutor em Direito pela Universidade de Paris e doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra. Em 2009, recebeu o título de Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
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