Suponhamos
que alguém entre em contato com um advogado para que este o represente
em um processo judicial. O causídico aceita o patrocínio dos interesses
do cliente, mas não informa o montante dos honorários, cujo pagamento
será feito mediante a entrega de um cheque em branco ao advogado.
Disparate
sem tamanho?Sem a menor dúvida. Mas, por incrível que pareça, é dessa
forma que se estabelece a fixação dos subsídios dos (mal chamados)
representantes políticos do povo. Com uma diferença, porém: os eleitos
pelo povo não precisam pedir a este a emissão de um cheque em branco:
eles simplesmente decidem entre si o montante de sua auto-remuneração,
pagando-se com os recursos públicos, isto é, com dinheiro do
povo.Imaginemos agora que o advogado em questão, sempre sem avisar o
cliente, resolve confiar o patrocínio dos interesses deste a um
companheiro de escritório, por ele designado, a quem entrega o cheque em
branco. Contrassenso ainda maior, não é mesmo?
Pois
bem, é assim que procedem os nossos senadores, em relação aos suplentes
por eles escolhidos, quando se afastam do exercício de suas funções.
Não
discuto aqui o montante da remuneração percebida pelos membros do
Congresso Nacional, embora esse montante não seja desprezível. Além dos
subsídios mensais propriamente ditos – quinze por ano –, há toda uma
série de vantagens adicionais. Por exemplo: o “auxílio-paletó” no início
de cada sessão legislativa (no valor de um subsídio mensal); a verba
que cada parlamentar pode gastar como bem entender no seu Estado de
origem; as passagens aéreas gratuitas para o seu Estado; sem falar nas
múltiplas mordomias do cargo, como moradia amplamente equipada, carro
oficial e motorista etc. Segundo o noticiado na imprensa, esse total da
auto-remuneração pessoal dos membros do Congresso Nacional eleva-se,
hoje, à cifra (modesta, segundo eles) de R$114 mil por mês.
Ora,
tendo em vista o estafante trabalho que cada deputado federal e senador
realizam – eles trabalham, em média, três dias por semana –, resolveu o
Congresso Nacional, por um Decreto Legislativo datado de 19 de dezembro
de 2010, elevar o montante do subsídio-base para a legislatura em curso
em 62% (por extenso, para confirmar a correção dos algarismos: sessenta
e dois por cento).
Ao
mesmo tempo, consternados com o fato de perceberem remuneração superior
à do presidente e vice-presidente da República, bem como à dos
ministros de Estado, os parlamentares decidiram, pelo mesmo Decreto
Legislativo, a equiparação geral de subsídios.
Acontece
que o subsídio dos deputados federais serve de base para a fixação do
subsídio dos deputados estaduais e dos vereadores, em todo o país. Como
se vê, a generosidade dos membros do Congresso Nacional, com dinheiro do
povo, não se limita a eles próprios.
Agora, perguntará o (indignado, espero) leitor destas linhas: – Como pôr fim a essa torpeza?
Pelo
modo mais simples e direto: transformando o falso mandato político em
mandato autêntico. Ou seja, instituindo entre nós um verdadeiro regime
democrático, em substituição ao fraudulento que aí está. Se o povo é
realmente soberano, se ele elege representantes políticos para que eles
atuem, não em proveito próprio, mas em prol do bem comum do povo, então é
preciso inverter a relação política: ao em vez de se submeter aos
mandatários que ele próprio elegeu, o povo passa a exercer controle
sobre eles.
Alguns
exemplos. O povo adquire o poder de manifestar livremente a sua vontade
em referendos e plebiscitos, sem precisar da autorização do Congresso
Nacional para tanto, como dispõe fraudulentamente a Constituição (art.
49, inciso xv). O povo adquire o poder de destituir pelo voto aqueles
que elegeu (recall), como acontece em várias unidades da federação norte-americana.
Nesse sentido, é de uma evidência palmar que a fixação do subsídio e seus acréscimos, de todos os que foram eleitos pelo voto popular, deve ser referendada pelo povo.
Para
tanto, o autor destas linhas elaborou um anteprojeto de lei,
apresentado pelo Conselho Federal da OAB à Comissão de Legislação
Participativa da Câmara dos Deputados , instituindo o referendo
obrigatório do decreto de fixação de subsídios, quer dos parlamentares,
quer dos membros da cúpula do Executivo. Sabem qual foi a decisão da
Comissão? Ela rejeitou o anteprojeto por unanimidade.
Confirmou-se
assim, mais uma vez, o único elemento absolutamente constante em toda a
nossa história política: o povo brasileiro é o grande ausente. A nossa
democracia (“um lamentável mal-entendido”, como disse Sérgio Buarque de
Holanda) é realmente original: logramos a proeza de fazê-la funcionar
sem povo.
FÁBIO KONDER COMPARATO - DOUTOR EM DIREITO NA UNIVERSIDADE DE SOBORNNE NA FRANÇA
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