Ninguém medianamente conhecedor de nossa História ignora que a
corrupção dos agentes públicos é um mal endêmico no Brasil e existe
desde o início da colonização, abrangendo indistintamente todos os
órgãos do Estado. De se notar, aliás, que até a separação entre a Igreja
e o Estado, com o advento do regime republicano, os membros do clero
não se distinguiam muito dos funcionários leigos, sob esse aspecto.
Para ficarmos tão-só no campo da corrupção da Justiça, é preciso
lembrar o testemunho dos viajantes estrangeiros durante todo o século
XIX.
No relato de sua viagem ao Rio de Janeiro e a Minas Gerais, no início
do século, Auguste Saint-Hilaire observou: “Em um país no qual uma
longa escravidão fez, por assim dizer, da corrupção uma espécie de
hábito, os magistrados, libertos de qualquer espécie de vigilância,
podem impunemente ceder às tentações”.
No mesmo sentido, John Luccock, que aqui viveu de 1808 a 1818: “Na
realidade, parece ser de regra que no Brasil toda a Justiça seja
comprada. Esse sentimento se acha por tal forma arraigado nos costumes e
na maneira geral de pensar, que talvez ninguém o considere danoso; por
outro lado, protestar contra a prática de semelhante máxima pareceria
não somente ridículo, como serviria apenas para provocar a completa
ruína do queixoso”.
E Charles Darwin, por ocasião da estada do Beagle em nosso país, em
1832: “Não importa o tamanho das acusações que possam existir contra um
homem de posses, é seguro que em pouco tempo ele estará livre. Todos
aqui podem ser subornados.”
E, na verdade, a desonestidade não grassava apenas na esfera dos
agentes públicos leigos, mas invadia também, e largamente, o terreno
eclesiástico.
Em carta que dirigiu ao rei de Portugal em 1719, o Conde de Assumar,
governador da capitania de São Paulo e Minas Gerais, relatava “o
deplorável estado em que vivem neste país quase todos os eclesiásticos”.
E acrescentava: “sem ofender os seus reais ouvidos (...), seu menor
vício é estarem publicamente amancebados”, chegando mesmo a participar
de duelos para defender a “honra” de suas concubinas. Quanto às suas
ocupações, consagravam o mínimo de seu tempo às funções sacerdotais,
preferindo antes dedicar-se ao contrabando de ouro e pedras preciosas, à
exploração de minas ou engenhos, ou ao ofício de estalajadeiros, de
farmacêuticos ou mesmo de curandeiros, como atestaram, ainda aí, além de
Saint-Hilaire, os viajantes estrangeiros John Mawe, Eschwege, Spix e
Martius.
Não tenhamos dúvida, entre nós a corrupção de políticos e
administradores públicos é uma prática já entranhada na mentalidade
coletiva e que permeia os costumes ou modos de comportamento de todas as
classes sociais. Os que têm recursos – pecuniários ou de influência –
corrompem o quanto podem, sem problemas de consciência. Quanto aos que
não têm recursos, eles não condenam corruptores e corruptos, dando a
entender que fariam o mesmo se estivessem no lugar de uns ou de outros.
Sou, no entanto, bastante idoso para perceber que a situação começa a
mudar. Hoje, ao contrário do que parece, a corrupção não aumentou em
relação ao passado. A verdadeira mudança ocorreu com a redução do número
de pessoas que manifestam indiferença ou complacência para com a
generalizada prática do suborno.
Entendo que a atual Presidente da República tem seguido, com coragem e
determinação, no rumo certo: a intransigência com qualquer prática de
corrupção no Poder Executivo federal, mesmo quando contamina Ministros
de Estado.
Não basta, porém, apoiar a Presidente nessa missão moralizadora.
Como a mentalidade coletiva não muda rapidamente, é indispensável
montar uma política pública de longo prazo para combater a corrupção,
comportando instituições adequadas e uma ampla campanha de educação
cívica.
Dentre as instituições adequadas para lutar contra a improbidade
política e administrativa, entendo que devemos criar instrumentos novos
de atuação popular. Cito dois, que me parecem importantes.
De um lado, a criação de ouvidorias do povo, em todas as unidades da
federação e em relação a todos os órgãos públicos (Legislativo,
Executivo, Judiciário, Ministério Público); ouvidorias essas que
gozariam de autonomia administrativa e financeira, e cujos chefes seriam
eleitos pelo próprio povo e não nomeados pela chefia do órgão a ser
fiscalizado.
De outro lado, é imprescindível criar novas ações populares, isto é,
ações judiciais propostas por qualquer cidadão em nome do povo; não só
ações penais, mas também de improbidade administrativa, comportando
demissão do agente público. Na Constituição Imperial de 1824,
instituiu-se uma ação popular contra qualquer magistrado, por “suborno,
peita, peculato e concussão” (art. 157). Por que abandonamos essa
experiência no período republicano?
Quanto à campanha de educação cívica, ela deveria ser efetuada com
recursos públicos e contar com amplo apoio dos meios de comunicação de
massa, notadamente o rádio e a televisão.
FÁBIO KONDER COMPARATO - DOUTOR EM DIREITO NA UNIVERSIDADE DE SORBONNE NA FRANÇA
Nenhum comentário:
Postar um comentário