O impulso pela
conquista e manutenção do poder, em qualquer meio social – familiar,
tribal, nacional ou internacional – e em suas diferentes modalidades –
poder político, econômico, religioso, cultural – tem-se mostrado uma das
mais fortes paixões a agitar o coração humano. “A maior parte dos
homens”, observou Aristóteles, “deseja exercer um poder absoluto sobre
muitos”. Thomas Hobbes compartilhou inteiramente essa opinião: “Antes de
mais nada”, disse ele, “reconheço como uma inclinação geral do gênero
humano o desejo perpétuo e incansável de poder e mais poder, inclinação
essa que só cessa com a morte”. E a razão disso, como anunciou o Duque a
Sancho Pança, na véspera de sua posse como governador da fantástica
ilha Barataria é “ser dulcísima cosa el mandar y ser obedecido”.
Para a sabedoria grega, tal paixão nada mais seria do que o orgulho desmedido (hybris), considerado o mais devastador dos defeitos humanos, segundo adverte o coro no Agamenon de Ésquilo (375 – 379). “A hybris,
quando amadurece”, declama um personagem de outra de suas tragédias,
“produz a espiga do crime, e o produto de sua colheita é feito só de
lágrimas”. A paixão pelo poder chega mesmo, por vezes, a pôr na sombra o
impulso natural do amor materno, como o gênio de Shakespeare bem
intuiu. Advertida pelo marido da profecia lançada pelas três feiticeiras
de que ele seria rei, e sentindo que o temperamento do consorte é todo
feito de ternura , Lady Macbeth invoca os espíritos infernais
para que eles mudem o seu sexo frágil, enchendo-a, da cabeça aos pés, da
mais terrível crueldade. E a fim de sacudir os últimos escrúpulos de
consciência do marido, ela lhe lança em rosto uma estupenda bravata:
seria capaz de esmigalhar a cabeça do filho que amamenta, se isto fosse
indispensável para cumprir o seu desígnio de tornar-se rainha.
Aliás, de acordo com
as observações de alguns antropólogos, a atração avassaladora pelo poder
é algo que partilhamos com os outros primatas superiores. E a razão
disso é de ordem biológica. As relações de poder e submissão são
comandadas pela parte mais primitiva do cérebro humano, a chamada zona
límbica, que se encontra mesmo nos répteis. Daí porque as relações
sociais que envolvem comando e obediência tendem, não raro, a escapar a
todo controle racional, e investir mesmo contra todos os sentimentos
naturais. Comentando o episódio brutal, em que Augusto, cedendo às
instâncias de seus parceiros do momento, Marco Antonio e Lépido,
consentiu no assassínio de seu amigo Cícero, Plutarco observa que nenhum
animal é mais selvagem que o homem, quando a sua paixão é fundada no
poder.
De qualquer modo, é
preciso atentar para o fato de que objeto da paixão é a posse, uso e
gozo da posição de poder; não o “resultado do poder”, isto é, as obras
ou transformações suscetíveis de serem realizadas pelo seu exercício. A
possibilidade de se dobrarem as vontades alheias, e de se suscitar o
respeito, senão a veneração do povo, como se este se encontrasse diante
de um ídolo religioso, provoca um gozo intenso e durável. Aliás, um dos
mais importantes recursos de poder consiste em manter os governados em
estado permanente de temor e adoração, dois sentimentos, como se sabe,
característicos da submissão religiosa.
Importa também
salientar que, ao contrário da energia física, sujeita à segunda lei da
termodinâmica (entropia), ou seja, a sua constante degradação em calor, o
poder político tende sempre, pela sua própria natureza, à concentração,
tanto sob o aspecto subjetivo, quanto objetivo. “Quanto mais os homens
se sentem fortes”, observou Aristóteles, “tanto maior é o seu apetite de
dominação”. “É uma experiência eterna”, advertiu por sua vez
Montesquieu em passagem famosa, “que todo homem que detém o poder é
levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites.
Quem diria! Até a virtude precisa ser limitada”. As diferentes
experiências dos regimes políticos moralistas, puros e duros, têm
confirmado a justeza dessa observação, em todos os tempos e todas as
idades.
Acontece que no limite
– e aí está a verdadeira tragédia –, todo aquele que exerce um poder
despido de freios ou mecanismos de controle corre o risco de ser
dominado por ele, e de passar assim, objetivamente, da condição de
senhor à de escravo; ou seja, de alguém que já não se pertence, mas vive
submetido, servilmente, como o Fausto de Goethe, aos caprichos do
demônio que invocou. Efetivamente, raros são os homens de poder que não
se deixam escravizar pela “glória de mandar e a vã cobiça desta vaidade,
a quem chamamos fama”; raros os que não se deixam iludir pelo
“fraudulento gosto que se atiça cuma aura popular que honra se chama”,
como denunciou o velho da praia do Restelo nos Lusíadas.
Como já foi repetidas
vezes observado, a paixão pelo poder é intrinsecamente corruptora. Há,
sem dúvida, a corrupção mais vulgar, daquele que compra a consciência
alheia, ou vende a sua. Mas há também uma forma muito mais complexa e
sutil, que frisa à loucura moral. O indivíduo escravo dessa paixão tende
a se servir, para alcançar seus fins, de todos os sentimentos
altruístas que encontra disponíveis diante de si: o amor, a compaixão, a
generosidade, a lealdade, o espírito de serviço, a solidariedade. Com
desoladora freqüência, velhos amigos e grandes admiradores do
governante, ou então pessoas respeitáveis na sociedade pela sua correção
e sabedoria, são tentativamente usados em proveito próprio pelo titular
do poder, sem nenhum escrúpulo. Aristóteles assinalou
que os homens no poder costumam ter apenas duas espécies de amigos: os
úteis e os agradáveis. Eles querem os primeiros para executar suas
ordens com habilidade, sem levantar objeções de ordem moral, e procuram
os segundos como fonte de entretenimento e diversão.
O que os poderosos têm imensa
dificuldade em reconhecer é que, quanto maior o seu poder, mais
intensamente são eles cercados e pressionados por uma corte de áulicos,
os quais, por puro interesse pessoal ou de grupo, só cuidam de os
incensar e de louvar as suas decisões políticas, ocultando
sistematicamente os aspectos negativos da pessoa do chefe, ou das
decisões por eles tomadas. Como bem advertiu La Fontaine, ao concluir a
fábula da raposa e o corvo. Tudo isso explica porque é justamente no
exercício do poder que costumam vir à tona os defeitos recônditos da
alma humana. “O poder revela o homem”, diz Aristóteles. “Pode-se
conhecer bem a alma, os sentimentos, os princípios morais de um homem”.POR FÁBIO KONDER COMPARATO - DOUTOR EM DIREITO NA UNIVERSIDADE DE SORBONNE NA FRANÇA
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